Аpropriação e afiliação
O item que trata da individualidade das camas, berços, beliches e os armários tem grande importância em caracterizar algo como “seu” (do menor). Já a priorização de equipamentos públicos ou comunitários de lazer, esporte e cultura, a fim de proporcionar um maior convívio comunitário e a socialização dos usuários, traz a tona à questão dos espaços para convívio e brincadeiras, pois há uma grande necessidade em se pensar acerca desse espaço de interação com o meio e com o outro. Ambos promovem experiências constituintes da subjetividade, do “si mesmo” e do “si mesmo” relacionando-se com o outro.
Segundo Sawaia (1995) a brincadeira é uma das formas de patrimônio lúdico e cultural de um determinado grupo social, por meio desta são transmitidos valores, pensamentos, ensinamentos e costumes, além de viabilizar maneiras de expressões das crianças que brincam, bem como a reconstrução de valores diante das formas compartilhadas de brincar. O ato de brincar é algo que possui significado, constitui uma importante maneira de interação e inserção cultural e social.
Conforme o “Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC” todas essas recomendações têm como objetivo proporcionar a convivência com rotinas normais à infância e à adolescência, possibilitar a ocorrência de atividades que favoreçam o desenvolvimento infanto-juvenil, assim como promover a recuperação e a manutenção da autoestima e da identidade de todos. Como se lê no trecho a seguir:
As políticas de atenção a crianças e adolescentes devem voltar a atenção também para a estrutura física das entidades de atendimento. Mas não mais no sentido de medir sua eficiência pelo número de metros quadrados construídos ou pelo valor agregado à propriedade pelas benfeitorias realizadas internamente, como no passado. Ao contrário, talvez dizendo que o ambiente ideal para acolher provisoriamente crianças e adolescentes afastados de suas famílias pode ser encontrado na busca da simplicidade aconchegante das residências, possibilitando que cada um tenha lugar para desenvolver as atividades comuns à sua faixa etária e permitindo a expressão individual de todos, casa um a seu modo. Um ambiente que tenha generosas portas abertas para ir e vir e janelas que mostrem o mundo e permitam conhece-lo .
A ideia de filiação e apropriação do espaço
O processo de filiação diz respeito a uma questão social, a qual segundo Françoise Heretier (1996) resulta em um reconhecimento do lugar do jovem na sociedade e na família, o que mostra que esse processo não se fundamenta apenas na formação biológica do indivíduo, também envolve aspectos sociais.
De acordo com Sequeira (2005), em seu estudo de diferentes comunidades primitivas, pode-se comprovar que várias configurações priorizam o laço social, leis simbólicas que sustentam a filiação e o pertencimento, que vai além do biológico. Ou seja, a filiação é um laço social, por meio do qual a sociedade insere as pessoas em sua rede simbólica. As regras de filiação nunca são naturalmente fundadas, mostrando que, aquilo que é reconhecido como novo, de certa maneira, foram experiências já vividas em outras sociedades. Fazendo com que permaneça sempre o “domínio” da estrutura social sobre o indivíduo, como os elementos físicos, os quais são resultados de uma estrutura social instituída.
Dessa maneira, o papel da família esta relacionado ao pertencimento e filiação. A família tem como função transmitir os valores daquele grupo social e oferecer a experiência de pertencimento ao indivíduo, o que faz com que ele possua lugar nesse grupo. “O que sustenta uma pessoa são laços simbólicos, que lhes dão pertencimento, ordenação e valores” . Sendo assim, as crianças e adolescentes em situação de acolhimento possuem seus vínculos de filiação e pertencimento enfraquecidos, pois a maioria não possui os parâmetros provenientes da família.
Abordagem de Fisher
Para Fischer (1990) de acordo com a abordagem psicossocial, o ambiente é essencialmente o espaço organizado nas sociedades, constituindo o quadro social em que se vive. Desse modo, não se pode separar as características físicas e dimensões sociais de um lugar. Todo espaço é construído socialmente, não podendo desassociá-los.
Diante dessa perspectiva o espaço é definido como “[…] um conjunto de matrizes no seio das quais se desenrola a existência concreta dos indivíduos” . A partir disso se desenvolve a importância atribuída às relações que se estabelecem entre as pessoas e os diferentes ambientes que propiciam uma estrutura específica à conduta de cada um. Ou seja, tanto o indivíduo exerce influencia sobre o espaço, quanto o espaço sob o indivíduo e toda interação social é intercedida pelo ambiente no qual se exprime, é um processo de troca constante.
O espaço só existe a partir das relações que se estabelecem nele e com ele, são os usos de um lugar que importam. O espaço é um fator de influência e de condicionamento, pois quando ele é organizado age de certa maneira sobre o comportamento e as relações que ali ocorrem, esse é o espaço funcional. Outra forma de vê-lo é como espaço vivido, como o homem utiliza o lugar, como o trata afetiva e cognitivamente, ele é “[…] investido por uma experiência sensori-motora, táctil, visual, afectiva e social, que produz através das relações estabelecidas com ele, um conjunto de significações carregadas de valores culturais próprios”.
O que leva a compreender que os lugares estão repletos de significados, de acordo com o uso que se faz deles. A noção de espaço vivido indica a interdependência da pessoa com o meio, na medida em que este aparece como um campo de valores que determinam a sua conduta.
O espaço vivido foi estudado a partir da psicologia ecológica ao estudar o “behavior setting”, isto é, todo comportamento é moldado pelo contexto em que está inserido. A organização espacial vai determinar o sentido do lugar, sendo assim “[…] todo espaço social se apresenta como uma unidade composta de elementos físicos que interferem com dados sociais e culturais próprios dos lugares, dos contextos e dos grupos que nele se movem” .
O espaço vivido deve resultar no processo de apropriação do espaço, que é um processo psicológico fundamental de ação e intervenção sobre um determinado espaço, com o intuito de transformá-lo e personaliza-lo, essas formas de influência sobre os espaços se traduzem em relações de posse e afeto .
Como se lê:
[…] trata-se de um conjunto de artefactos pelos quais se opera uma estruturação do espaço segundo as necessidades e as aspirações; deste modo, um indivíduo ou um grupo indica a sua própria utilização de um lugar e a maneira como o ocupa, o transforma e nele vive. Em todo o caso, é a afirmação de uma variante pessoal, expressa em termos de estilo de ocupação, de transformação, de instalação, de organização; o elemento do espaço ou a porção do ambiente assim alterados vão transformar-se em sistema de influência, em estrutura de posse, pelos quais uma habitação idêntica a todas as outras será vivida como casa sua. A apropriação é uma maneira de materializar uma parte do seu universo mental no espaço físico ambiente, para o fazer nosso.O processo de apropriação diz respeito à qualidade ou especificidade de um local. Envolve as características físicas, históricas e as emoções do espaço e de quem irá habitá-lo. Ou seja, varia de acordo com a situação espacial determinada, em função do tipo de espaço, das características, de quem o utiliza, dos níveis sociais dos indivíduos e da intensão de cada um. Esse processo está relacionado ao sentimento de pertencer e fazer parte de um lugar.
Para Fischer (1990) o processo de apropriação está relacionado ao habitat. Suas transformações do arranjo interior são determinadas por diversas características espaciais: volume, forma, disposição etc, que tem muita influência nesse processo. “O habitat é o abrigo do hábito”, de modo que o espaço corresponde a uma esfera indispensável de apropriação pessoal, que é determinada pelo espaço e pelo corpo que dá lugar a uma espacialização de identidade. É um lugar privilegiado, onde se concretiza a relação do indivíduo com seu espaço. O autor afirma que além do espaço pessoal existe o habitat como espaço social, o qual põe em evidência a relação entre as variáveis espaciais como a arrumação, disposição de móveis e objetos, esse espaço pode favorecer ou não a apropriação. Por fim existe o habitat como espaço cultural, o qual está ligado a referência e ao valor do grupo humano que habita aquele lugar.
A apropriação do espaço resulta no processo de filiação, no qual esse espaço integra a identidade, personalidade de quem o habita. Sendo assim, o processo de filiação possui relevância no que diz respeito à formação física, moral e psíquica de cada indivíduo e de grupos sociais. O que vai além da filiação biológica, como citado acima, diz respeito às questões sociais que envolvem aquele espaço e quem o habita.
Grande parte das vezes os mecanismos de apropriação possuem um lapso entre a intensão de quem os concebeu e o interesse de quem irá utilizá-lo, ou seja, há uma lacuna entre o espaço construído e o espaço vivido. Devido ao fato de que na maioria das vezes quem concebe o espaço está unicamente preocupado com o “mercado” que impõe exigências, deixando de lado os anseios de quem irá fazer uso dele. Entretanto o indivíduo sempre busca uma forma de compensar essa “deficiência” do espaço em que vive, tentando transformá-lo a sua maneira.
Fischer (1990) pontua a respeito de habitar em grande conjunto, o que tem um custo psicológico elevado, determinado tanto pelo ambiente social imediato como pelas características materiais do próprio habitat. A vida em conjunto geralmente tem consequências a partir das características espaciais negativas como desconforto, nocividades, dentre outras. Nesses locais geralmente as pessoas são dispostas amontoadas, o que vai além da concepção do espaço, diz respeito às questões sociais. Como reitera em sua citação:
[…] num bom número de casos, as divisões de um alojamento são fortemente estandardizadas e reduzidas ao mínimo dos mínimos; o espaço é nesse caso vivido como um espartilho porque é assimilado a uma caixa na qual se tem de entrar e da qual se não pode realmente apropriar-se, dado que é à partida concebida de tal sorte que somos obrigados a moldar-nos segundo o programa previsto; está-se então perante um interdito e o espaço torna-se agente de conformização das atividades e das relações a um modelo único imposto. Em contrapartida, se o espaço de uma habitação é concebido segundo um volume e regras de afectação folgados, os moradores terão mais possibilidades de nele intervir e de o estruturar de acordo com os seus próprios critérios. (FISCHER, 1990, p. 84).Os abrigos são caracterizados como espaços institucionais. O espaço institucional se concebe como um lugar de “liberdade vigiada”, onde há uma divisão clara do que está fora e o que está dentro. Esse tipo de espaço é normativo, no qual se praticam um conjunto de prescrições que fixam o ritmo das atividades que ali ocorrem.
Como se lê:
Se a considerarmos agora do interior, esta característica de universo separado comporta um outro aspecto: para todos os que se encontram dentro, o espaço fechado constitui na verdade um encerramento, mesmo que seja só provisório. Este encerramento é de facto muitas vezes justificado como o suporte de uma integração, ou seja, de uma adequação do indivíduo aos espaços instituídos e organizados. Por outras palavras, o dentro apresenta-se como um conjunto de espaços que foram pré-estabelecidos independentemente de quem lá está; neste universo imperturbável, o quadro fornece o elemento organizador das atividades e das condutas e, ao fazê-lo, torna-as conformes .
Como se pode observar há uma dubiedade no que diz respeito a esse tipo de instituição, pois elas transitam entre espaços abertos e espaços fechados, não se enquadrando de maneira definitiva em nenhuma das classificações. De modo geral quanto mais esses espaços institucionais forem inadaptados às necessidades expressas pelos seus usuários, maior o sentimento de frustação, ligado a ideia de desapropriação, o que aumenta a probabilidade de se criarem espaços de isolamento e sem significado para quem o habita.