Constituições Internacionais e o que elas regulamentam
Introdução
A Constituição Federal de 1988 traz preceitos diretivos a implementação de ações afirmativas, ou seja, sua promoção por parte do Estado Brasileiro, essas medidas de natureza afirmativa têm por base fatores sociais e históricos sob aspectos nacionais e globais para desenvolver uma sociedade justa e equivalente em direitos e oportunidades, ressalta-se que há experiências nacionais e internacionais na promoção de tais medidas, com extrema relevância de resultados, que impactam desde a qualidade de vida dos cidadãos mais pobres ou com menos oportunidades como a própria economia do país, sendo clara que a natureza jurídica das ações afirmativas e a implementação de determinados suportes para objetivos diversos, tanto é que o instituto em si sofreu mutações desde suas primeiras implementações, ampliando-se as situações conforme elas se mostravam desiguais para uns e outros seguimentos sociais, inicialmente nos Estados Unidos, foi implementada por volta da década de 60, sendo usada como forma de amenizar a marginalização da população negra, posteriormente já em sentido de expansão foi atingindo outras fatias da sociedade como pessoas com deficiência e mulheres.
Resta claro que mesmo a principiológica constitucional internacional direcionando suas constituições para implementação do princípio da igualdade, fator esse que ocorreu após a segunda guerra, a ideia era formal, ou seja, “todos são iguais perante a lei”, entretanto tal igualdade se mostrou insuficiente visto que a própria sociedade tinha a percepção em suas fatias minoritárias do peso da desigualdade mascarado pela igualdade formal, essa ineficiência foi verificada de modo a ser concebido o conceito de igualdade material ou real, conceito esse estabelecido juntamente com o surgimento do Estado social, trazendo uma execução diferenciada do Estado para com a sociedade, no sentido de implementação de saúde, educação e empregos, visando um bem estar social, entre outros direitos sociais, inclusive romper desigualdades evidentes.
Quanto a questão do Estado social e a Constituição Federal de 1988, destaca-se que a mesma é direcionada por parâmetros idealísticos da Constituições do México (1917) e de Weimar (1919), deste modo, por essas diretrizes se consagra a prática do Estado Social no Brasil com características democráticas de direito, tanto é que já no seu art. 1º preleciona “a República Federativa do Brasil […] constitui-se em Estado Democrático de Direito […]”. A constituição também elenca em seu art. 3º, incisos I, II, III e IV entre os objetivos fundamentais da república: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e diminuir as desigualdades regionais e sociais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Observando tais aspectos constitucionais e forma de construção intui-se que a Constituição Federal de 1988 tem características de preceitos para aplicação e execução de estado social intervencionista, pois determina execuções positivas por parte do Estado Brasileiro reconhecendo a existência da desigualdade social e determinando sua modificação como objetivo da república, ou seja, todos são iguais perante a lei, entretanto quando há desigualdades também haverá o dever de reparação, abre-se um paradoxo tênue, visto que não há igualdade se há desigualdade, logo, é necessário tratamento por meio de ações do Estado para equiparação de condições e concretização do equilíbrio da melhor forma e mais próxima possível da igualdade real.
Аssim para execução da principiológica da igualdade, nasce as medidas de discriminações positivas ou ações afirmativas, com enfoque em modificar, propiciar e dar alcance a direitos e oportunidades nas relações sociais ampliando acesso a determinados grupos e minorias da sociedade, permitindo real aplicação da logica isonômica, podendo ter caráter reparador ante a questões históricas ou simplesmente de acesso.
Como já destacado, a execução de tais medidas é uma obrigação constitucional para aplicação no plano material do princípio da igualdade, logo não há vínculos políticos partidários, assim como as leis, as ações afirmativas podem ser definidas a partir da lógica “fato, valor e norma”, há um fato social relevante, dá-se a ele um valor, cria-se uma norma sobre, ou seja, há um fato social de clara desigualdade por exemplo pessoas negras não terem uma participação relevante no ensino superior mesmo representando mais da metade da população nacional, valora-se que há um erro no acesso, nas oportunidades, logo para correção normatiza-se uma ação para reduzir tal discrepância, que no caso seria cotas raciais nas universidades, sendo as cotas um exemplo de ação afirmativa de execução por reparação histórica e ao mesmo tempo de acesso.
2 Isonomia formal em paralelo a isonomia real
2.1 Considerações
A Constituição Federal Brasileira outorgada em 1988 explicita em seu Capítulo I, Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, no artigo 5º, caput, sobre a igualdade como princípio constitucional, da seguinte forma:
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (…)
Assim como pode-se observar, a intenção é trazer uma lógica igualitária para definições de leis, direitos e deveres, e a partir desse entendimento em outro aspecto proíbe-se determinados tipos de diferenciações em atuações legislativas ou particulares, sejam elas controversas a lei, absurdas ou arbitrárias, ou seja, contrários aos valores idealizados pela Constituição Federal Brasileira.
O principiológica da isonomia deve ser visto e analisado em dois aspectos, primeiro sob análise diante da lei já existente ou de sua ausência e posteriormente sob a efetividade da lei ou os efeitos da omissão legislativa. A igualdade sob o aspecto legal deve objetivar sua aplicação em casos concretos, seja por pela própria lei em si, ou por meio de descriminações positivas, no ideal de políticas públicas, a ex Secretária de Educação Superior do Ministério da Educação, MEC, Maria Paula Dallari Bucci (2002, p. 239), traz uma excelente visão e conceito sobre a temática:
Um programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados (…) visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.
A partir desse diapasão tem-se necessário o entendimento do princípio da igualdade ou isonomia como um objetivo constitucional, entretanto o mesmo não pode ser conhecido apenas em seu sentido formal com a mera aplicação legal para todos, visto que nesse caso haveria um paradoxo da real igualdade, onde com o tratamento geral a partir da igualdade formal muito teriam desvantagens por não conseguirem as condições ideais, gerando então desigualdade como resultado final, nesse ponto que é de fato necessária a diferenciação da igualdade formal da real, a igualdade real ou material vai além do sentido simplório da igualdade, ela vê as desigualdades e diferenças de alcance no meio social, identificando assim a necessidade de tratamento diferenciado a certos grupos para que seja possível o acesso igual aos resultados, deste modo todos de fato terão possibilidades e acessos similares, mesmo se tratando de pessoas possuidoras de desvantagens, esses meios, podem por exemplo serem implementados por políticas públicas, sendo sua execução uma espécie de distinção constitucionalmente autorizada.
No mesmo raciocínio Robert Alexy levando em consideração a jurisprudência alemã, leciona no sentido “se houver uma razão suficiente para o dever de um tratamento desigual, então, o tratamento desigual é obrigatório” . Ainda de acordo com o professor Roberto Alexy:
A assimetria entre a norma de tratamento igual e a norma de tratamento desigual tem como consequência a possibilidade de compreender o enunciado geral de igualdade como um princípio da igualdade, que prima facie exige um tratamento igual e que permite um tratamento desigual apenas se isso for justificado por princípios contrapostos.
Logo a uma obrigação constitucional imposta ao legislador que não poderá editar normas que se coloquem opostas a igualdade real, ou delimitem sua abrangência sob o risco de serem tidas como inconstitucionais, por outro ângulo essa obrigação também é imposta aos outros poderes, tanto no caso do judiciário como intérprete, quanto o executivo na figura de autoridades políticas, de forma a não executar suas funções sem o devido respeito a principiológica constitucional, evitando assim criar ou aumentar desigualdades, no mesmo sentindo o particular também não deve a partir de seus atos ou condutas produzir ou reproduzir atos discriminatórios em contrário ao preceituado na constituição.
O autor e professor Celso Antônio Bandeira de Mello, entende que “é possível que a lei atinja uma categoria específica de pessoas, ou até mesmo um só indivíduo, desde que vise sujeito indeterminado e indeterminável no presente” , preceituando também:
(…) o primeiro tipo de norma é insuscetível de hostilizar a igualdade quanto ao aspecto ora cogitado, isto é, quanto à “individualização atual do destinatário”, porque seu teor geral exclui racionalmente este vício. O segundo também não fere a isonomia, no que pertine ao aspecto sub examine, porque não agride o conteúdo real do preceito isonômico: evitar perseguições ou favoritismos em relação a determinadas pessoas.
Ou seja, o tratamento desigual deve ser pautado por criterios rigidos e também principiológicos de proporcionalidade e razoabilidade evitando criação de privilégios, que por si só descaracterizariam e banalisariam a igualdade real.
2.2 O Nascer da Igualdade
Debater a ideologia conceitual da isonomia, a igualdade em si, e algo que foi buscado e executado por diversos filósofos durante a história, Aristóteles por exemplo, observa-se em sua obra, Livro V de “Ética a Nicômaco”, fica claro que desde muito tempo se tem a ideia do justo e do injusto, porém o autor coloca como critério para saber o que é igualdade o reconhecimento de tais critérios, ou seja, para definir-se o que é justo independentemente de outros critérios, deve-se ver o injusto para que seja expurgado, esse conhecimento é basicamente primal a isonomia material, o autor destaca na mesma obra:
(…) a virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. É um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta, pois nos vícios ou há falta ou há excesso daquilo que é conveniente, no que concerne às ações e às paixões, ao passo que a virtude encontra e escolhe o meio-termo.
Em outro espectro sociológico e filosófico, temos Thomas Hobbes, que entendia numa espécie de seleção natural hierárquica, onde sempre haveria de ter um ser humano superior de vantagens, seja física ou intelectual, e o medo de serem sobrepujados exercia certo controle, exceto em caso de escassez de recursos, onde o medo seria substituído pela necessidade, e haveria a existência de um descontrole social. Aspecto esse que pode ser destacado em sua redação no livro Leviatã (1983, p. 74):
A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestadamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.
Contudo apesar das aspirações filosóficas e sociológicas inerentes ao desenvolver do ser humano e da sociedade em si, foi somente a partir do século XVIII que a ideologia de igualdade como princípio na sociedade começou a se solidificar, esse período temporal de mudanças e reinvindicações de carências sociais foi caracterizado pela tomada do poder da burguesia e início das revoluções liberais que começaram a introdução da igualdade como direito da humanidade e princípio constitucional, sendo requisição da base revolucionaria um regime de cunho igualitário para sociedade, ou com características de igualdade e fraternidade, pregados principalmente pela revolução Francesa, que visava a cooperação social chegando perto do que posteriormente seria a ideologia da igualdade material, também há destaque a Revolução norte-americana com características similares porém com objetivos mais vinculados a liberdade, algo similar ou equiparado as políticas progressistas atuais, em geral em cunho conceitual, esses movimentos pregavam a igualdade de todos perante a lei, sendo essa idealística uma bandeira a ser protegida e inerentemente fixada aos termos constituintes da época, tornando-se de fato um princípio.
Pode-se dizer que o intuito era romper com estruturas político partidárias de regimes anteriores, destacando fatores de aplicação a igualdade como linearidade de direitos e expurgo de privilégios que eram concedidos somente a núcleos sociais específicos da sociedade e da igreja, ou seja, nobreza e clero, entretanto parte poderosa da sociedade definida como burguesia estava cada vez mais forte e mais influente, e o fato da sociedade em geral ter dependência do comercio a fez ter voz, levando-a a ascensão, logo não mais desejava ser inferior a outras fatias sociais por classificação de castas, sendo esse o ponto fundamental para consolidar uma política de igualdade perante a lei, e abolição do sistema de castas.
Entretanto, como se observa a igualdade inicialmente foi usada como ferramenta política para uma classe social já dominante em recursos destronar aspectos monárquicos da efígie social, de modo a ascender como classe social dominante em decorrência de controlar o mercado, com essa ascensão agora não a burguesia precisaria se submeter a outros núcleos sociais superiores simplesmente por conta de linhagens sanguíneas ou até mesmo por pertencerem a grupos religiosos, ou seja, a igualdade de fato nunca foi o real objetivo, o professor José Afonso da Silva, em seu livro Curso de direito constitucional positivo (1999, p.14) destaca:
(…) o direito de igualdade não tem merecido tantos discursos como a liberdade. As discussões, os debates doutrinários e até as lutas em torno desta obnubilaram aquela. É que a igualdade constitui o signo fundamental da democracia. Não admite os privilégios e distinções que um regime simplesmente liberal consagra. Por isso é que a burguesia, cônscia do seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade. É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o domínio de classe em que se assenta a democracia liberal burguesa.
Deste modo, seguindo os preceitos históricos e doutrinários, podemos entender que mesmo a ideação da igualdade formal foi maculada, seus critérios inicialmente não eram claros ou totalmente amplos a toda sociedade, de forma que mesmo propagando igualdade propagava ainda desigualdade, em contraste com a realidade atual, seria algo visto como inconstitucional em parte, com uma execução que de certo modo perpetua a desigualdade, apenas mudando aquele que seria o elo social a receber vantagens.
2.2.1 Igualdade puramente formal
O sentido formal da aplicação principiológica da isonomia trata-se de um aspecto basilar, como é descrita e positivada na lei por exemplo, a partir dessa positivação é possível determinar medidas impeditivas de criação ou desenvolvimento desigualdades de cunho negativo a sociedade, de forma a vincular o comportamento do Estado e da sociedade em si, com preceitos objetivos em maioria, como comportados no artigo 5º da Constituição Federal do Brasil, impedindo descriminações por critérios de raça, cor, sexo, credo ou etnia, entretanto não se trata de rol taxativo, o objeto igualdade vai muito além do plano formal.
Como exemplificação de construção ideológica da igualdade formal, tem destaque a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de autoria da Assembleia Nacional Constituinte Francesa (1789), entre vários artigos destaca-se:
Art. 1º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. […] Art. 6º A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.
A partir da exemplificação é possível entender uma idealização de como promover e do que se pretende com a igualdade para com a sociedade, porém ainda apenas de cunho genérico, formal, sem uma ideação prática de fato, o que só se solidifica com a interpretação extensiva da lei, a aplicação pelo executivo de políticas públicas e compreensão de suas necessidades.